O que queria ter escrito

Tem tantos no mundo. Ele é obviamente grande demais, não há necessidade de ir tão longe se tem gente suficiente por aqui. Nem precisa de uma volta no bairro, ligar a TV ou o computador. Feche os olhos por alguns minutos – em pé, para que teu corpo não te permita dormir. Vai sentir uma vibração numa frequência as vezes alta, as vezes fria. São os outros, passando por você, entre o que acontece dentro de você. Dá para escolher? São tão diferentes, tem capacidades tão diferentes... Se é que é preciso escolher. Amar é ser e pedir exclusividade, e é isso o que acaba acontecendo: se deixa de amar todos os outros, os quais nunca provou do amor, para se limitar a só um. Talvez amar seja sentir a frequência.
Pensando nisso, Percival atravessa a rua. Essa rua parece menos escura do que ontem, cochicha, com medo de alguém ouvir. Já aprendeu a dizer mudo, a imaginar as palavras só para si, mas tem um prazer lúdico ao sentir o pensamento melodiado e bagunçado com os outros barulhos da cidade. Prefere esse parecer que está falando com alguém, assim de algum jeito se faz acreditar que é parte da cidade. Finge parecer menos sozinho, finge parecer mais.
E a sobra de Percival não impede seus dentes de escaparem da boca ocasionalmente. Ao contrário dele, alguns percebem e se assustam, não o bastante pro susto virar aviso. Está ocupado demais tentando cochichar no ritmo de todo o resto, sem atrapalhar, sem pedir para virar resto.
- Estou cansado de despedidas, completa Janta, sempre esquecendo que é fêmea.
- Acho que funciono ao avesso, me cansei é das conhecidas. Essa coisa de me apresentar... Como se me conhecesse!
- Mas se despedir-se de todos e não conhecer mais ninguém, vai ficar sozinho.
Percival respirou fundo. Seu nariz esquentou. Já fazia tanto que se sentia sozinho. Isso não tem a ver com a companhia, tem a ver com estar dividido: meio vazio, meio cheio de merda. Há quem se engane, mas Percival manja do feng shui desse interior. O vazio ocupa espaço, não deixa outras coisas entrarem porque curte a teimosia de ocupar. Já a merda, coitada, é ingênua o suficiente para acreditar que a culpa pelo vazio é dela. Ela pesa bastante, até porque é geralmente onde o vazio descansa os braços. Ela entra com a mesma facilidade e necessidade que sai. É impressionante, olhando de uma distância confortável, o quanto o organismo precisa de merda. Percival não se tocou que não tinha respondido.
- Tu sempre te distrai. Aliás, antes fosse só tu. Deve de ser por isso que não gosto de me despedir. Parece que ninguém escuta o que tenho para dizer, que o importante da despedida é virar as costas e sentir saudade.
Janta ainda acredita que pode ser especial na vida dos outros e das pessoas, cochicha Percival. Ela não entendeu ainda o quanto é descartável. Realmente ninguém liga.
- Cuma?
- Tá querendo dizer que não vamos mais nos ver?
- To querendo dizer que não gosto de despedir, só isso. Terminou a frase antes de terminar de jogar a orelha para trás, com um gesto que subiu da coluna e rastejou do pescoço até a cabeça.
- Então, Percival sabia que ela estava mentindo, o que quer dizer? Vai passar um tempo fora?
- Não sei ainda. Sinto como se estivesse num buraco. É fundo o suficiente para não saber o que acontece lá em cima – só vejo a luz do dia. Apesar disso estou confiante que me observam. Apesar das paredes do buraco, me sento exposta.
- Já tentou escalar, pedir ajuda...?
- Tentei voar. Quase consegui algumas vezes, mas o ar parece não querer deixar. Será que preciso de permissão de alguém?
O instante fez-se num silêncio, daqueles que não incomodam. Seria fácil chutar, pelo cessar do cochicho, que até o pensamento estava silencioso. Os dois mantinham a marcha sem qualquer dedicação, e dela nem precisavam, já que a direção estava determinada, como o trem é ao trilho, pela distância perfeita entre seus olhares. Um prazer, ou uma vontade um tanto mórbida, não se sabe ao certo, começava a querer invadir este espaço, que parecia vazio até então. Percival interrompe a interrupção ao pedir que o barulho volte a barulhar:
- Agora não vou dizer nada. Não por desatenção. Por não ter o que dizer.
Enquanto caminhavam em direção ao almoço, Percival parou de prestar atenção no cochicho, em Janta, nos outros ruídos... Lembrou do que aconteceu há uns anos atrás, quando conseguiu sair de um buraco. Não parecia tão fundo quanto este, mas não custa lembrar.
Naquela época estava ansioso de nunca sentir medo, de tanto que o protegiam. Dividia um quintal com alguns colegas um tanto carinhosos e divertidos. Até lhe serviram comida. Desconfiou quando o prenderam sozinho dentro de casa, mas logo supôs que foi um mal entendido.
Depois desse dia que começou a caminhar ignorando o caminho, prestando atenção em estar tão contrariado, tão em dívida com a própria dúvida. Tanto não via nada, que caiu antes de se tocar do buraco, só sentiu a queda quando bateu o medo. Ficou um tempo lá, curtindo. Lembrou de um programa que assistira, em que um especialista dizia que a introspecção era necessária. Tinha permissão para achar que precisava.
Depois que a excitação inicial passou, esqueceu do especialista, relacionou a queda com o todo e qualificou a própria situação como “preso num buraco”. Cochichou e tentou algumas estratégias para sair, nenhuma funcionou. Foi quando decidiu cavar. Sem instrumentos próprios, podia usar as unhas, enquanto estivessem ali. Como não cortava com frequência nenhuma, eram duras, quase como ossos expostos pela ponta dos dedos.
- Se conseguir cavar bem rápido na diagonal, consigo ainda chegar para o jantar, cochichou bem baixinho, para não acordar o cansaço.
- Quanto maior, mais vazio e longe do resto fico, respondeu o buraco.
- Bela audição.
- Não mude de assunto. Se quer comer ainda hoje apresse-se em tirar a si do caminho, e não a mim.
O buraco era sua própria solução. Era o problema e a saída. Percival seguiu o conselho. Não tinha que fazer muita coisa, o buraco que tinha que sair dele, que desistir. Afinal, queria mais e sabia que só precisava sentir.
Quando fora, se despediu do oráculo e estreou novamente a liberdade. Apesar de não ser uma liberdade total, combina melhor com Percival do que a segurança do buraco. Foi atrás do pessoal com quem dividia a casa. Ela estava mudada, mas estava lá, eles não. Aparentemente, o tempo correu diferente por aqui. Será que cansaram da demora? Amaldiçoou o buraco, seus amigos, o abandono, a culpa...
Suas maldições sempre duravam tanto quanto seu ressentimento. Logo estava melhor do que antes. Sacou que nunca, nem muito antes da queda, precisara destes amigos. Acrescentou até uma alteração no próprio vocabulário, não queria mais chamar quem dividia a casa de amigos. Parou para pensar se estava sendo muito exigente. Continuou, podia pensar andando.
- Como vou confiar neles?
Percival não sabia como se explicar. Sabia que eles gastam sua existência aprendendo o que é preciso para existir, de outros que desconhecem o que fazem, ou o que estão fazendo. Sabia que passaram tanto tempo construindo uma ideia de conforto, de praticidade, construindo os deuses substitutos, instrumentos para facilitar dificuldades nem tão difíceis, que se esqueceram de como eram, se fizeram obsoletos. Sabia que os equipamentos fazem tudo, enfim, não há mais necessidade nem de si. Percival só conseguia conceber em deuses pré-agora e pós-depois, daqueles que dançavam voando. Afinal, só não voa quem acredita que gravidade é regra, ou pior, quem acredita em regra.
Ao exemplo de todo o resto, que grande contradição. Quem ensinou isso a ele foi o buraco. Por um salto de momento, voltar nesse assunto fez com que voltasse junto.
- Do que está falando?
- Nada que queira te contar, só cochichei pro lado errado.
- Ok. Falta muito?
- Sei lá, tu que sabe onde é.
- Anhé!
Andavam em paralelo, de cabeça e atenção para a calçada. Ambos não pensavam em nada, senão no caminho que estavam fazendo, nos passos que davam e no casamento deles com a aquarela acidental do cimento e dos azulejos. Janta se sentia pesada. Como se quase todo seu corpo estivesse pendurado, se via num abismo em que só uma parte sua segurava todo o resto. Se esta falhasse, ela ia cair. A única certeza é que depois não conseguiria se levantar, e nem vontade teria.
- Não entendo os suicidas.
- Também não.
- Temos tantas vidas... Se quiser abandonar uma, não precisa largar todas.
- Nunca pensei por esse lado.
- Pois é. Alguns se mudam, largam aquilo que costumamos chamar de tudo. Outros largam tudo mesmo, vão para lugares sem regras. Lugares em que podem fazer as próprias e chamar amigos e simpatizantes desse desmanche da gente. Posso até imaginar que lá ninguém nos julgue por ser o que somos, disse quase suspirando.
Percival gostou muito da ideia e sorriu um sorriso involuntário, tão sorrido, que surpreenderia qualquer um que se arriscasse a encarar um pouco. Queria viver desta maneira, ou já ter vivido para contar para aqueles que acham impossível e para quem nem considerara esta alternativa. Não sabia nem ler e isso não o impedia da vontade de escrever um livro inteiro sobre tudo isso. Já se imaginava correndo, errando, descobrindo o que até agora não tinha nenhuma importância.
Faltaria poucos passos, se não fosse a chuva. A água que vem de cima, por algum motivo, tem um jeito estranho de limpar o que nem parecia sujo. Antes de cair, ela te dá um toque e te conta uma outra versão da onde está pisando. Isso dificulta as coisas para a pressa. Ninguém consegue manter o ritmo com tanta informação caindo e formando poça.
Chegando lá, logo onde achavam que queriam chegar, Janta cheirou seu rosto e disse, com uma voz rouca e tímida e colorida:
- Entendi. Dividimos o que perdemos.

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