Pensando nisso, Percival atravessa a
rua. Essa rua parece menos escura do que ontem, cochicha, com medo de
alguém ouvir. Já aprendeu a dizer mudo, a imaginar as palavras só
para si, mas tem um prazer lúdico ao sentir o pensamento melodiado e
bagunçado com os outros barulhos da cidade. Prefere esse parecer que
está falando com alguém, assim de algum jeito se faz acreditar que
é parte da cidade. Finge parecer menos sozinho, finge parecer mais.
E a sobra de Percival não impede
seus dentes de escaparem da boca ocasionalmente. Ao contrário dele,
alguns percebem e se assustam, não o bastante pro susto virar aviso.
Está ocupado demais tentando cochichar no ritmo de todo o resto, sem
atrapalhar, sem pedir para virar resto.
- Estou cansado de despedidas,
completa Janta, sempre esquecendo que é fêmea.
- Acho que funciono ao avesso, me
cansei é das conhecidas. Essa coisa de me apresentar... Como se me
conhecesse!
- Mas se despedir-se de todos e não
conhecer mais ninguém, vai ficar sozinho.
Percival respirou fundo. Seu nariz
esquentou. Já fazia tanto que se sentia sozinho. Isso não tem a ver
com a companhia, tem a ver com estar dividido: meio vazio, meio cheio
de merda. Há quem se engane, mas Percival manja do feng shui desse
interior. O vazio ocupa espaço, não deixa outras coisas entrarem
porque curte a teimosia de ocupar. Já a merda, coitada, é ingênua
o suficiente para acreditar que a culpa pelo vazio é dela. Ela pesa
bastante, até porque é geralmente onde o vazio descansa os braços.
Ela entra com a mesma facilidade e necessidade que sai. É
impressionante, olhando de uma distância confortável, o quanto o
organismo precisa de merda. Percival não se tocou que não tinha
respondido.
- Tu sempre te distrai. Aliás, antes
fosse só tu. Deve de ser por isso que não gosto de me despedir.
Parece que ninguém escuta o que tenho para dizer, que o importante
da despedida é virar as costas e sentir saudade.
Janta ainda acredita que pode ser
especial na vida dos outros e das pessoas, cochicha Percival. Ela não
entendeu ainda o quanto é descartável. Realmente ninguém liga.
- Cuma?
- Tá querendo dizer que não vamos
mais nos ver?
- To querendo dizer que não gosto de
despedir, só isso. Terminou a frase antes de terminar de jogar a
orelha para trás, com um gesto que subiu da coluna e rastejou do
pescoço até a cabeça.
- Então, Percival sabia que ela
estava mentindo, o que quer dizer? Vai passar um tempo fora?
- Não sei ainda. Sinto como se
estivesse num buraco. É fundo o suficiente para não saber o que
acontece lá em cima – só vejo a luz do dia. Apesar disso estou
confiante que me observam. Apesar das paredes do buraco, me sento
exposta.
- Já tentou escalar, pedir ajuda...?
- Tentei voar. Quase consegui algumas
vezes, mas o ar parece não querer deixar. Será que preciso de
permissão de alguém?
O instante fez-se num silêncio,
daqueles que não incomodam. Seria fácil chutar, pelo cessar do
cochicho, que até o pensamento estava silencioso. Os dois mantinham
a marcha sem qualquer dedicação, e dela nem precisavam, já que a
direção estava determinada, como o trem é ao trilho, pela
distância perfeita entre seus olhares. Um prazer, ou uma vontade um
tanto mórbida, não se sabe ao certo, começava a querer invadir
este espaço, que parecia vazio até então. Percival interrompe a
interrupção ao pedir que o barulho volte a barulhar:
- Agora não vou dizer nada. Não por
desatenção. Por não ter o que dizer.
Enquanto caminhavam em direção ao
almoço, Percival parou de prestar atenção no cochicho, em Janta,
nos outros ruídos... Lembrou do que aconteceu há uns anos atrás,
quando conseguiu sair de um buraco. Não parecia tão fundo quanto
este, mas não custa lembrar.
Naquela época estava ansioso de
nunca sentir medo, de tanto que o protegiam. Dividia um quintal com
alguns colegas um tanto carinhosos e divertidos. Até lhe serviram
comida. Desconfiou quando o prenderam sozinho dentro de casa, mas
logo supôs que foi um mal entendido.
Depois desse dia que começou a
caminhar ignorando o caminho, prestando atenção em estar tão
contrariado, tão em dívida com a própria dúvida. Tanto não via
nada, que caiu antes de se tocar do buraco, só sentiu a queda quando
bateu o medo. Ficou um tempo lá, curtindo. Lembrou de um programa
que assistira, em que um especialista dizia que a introspecção era
necessária. Tinha permissão para achar que precisava.
Depois que a excitação inicial
passou, esqueceu do especialista, relacionou a queda com o todo e
qualificou a própria situação como “preso num buraco”.
Cochichou e tentou algumas estratégias para sair, nenhuma funcionou.
Foi quando decidiu cavar. Sem instrumentos próprios, podia usar as
unhas, enquanto estivessem ali. Como não cortava com frequência
nenhuma, eram duras, quase como ossos expostos pela ponta dos dedos.
- Se conseguir cavar bem rápido na
diagonal, consigo ainda chegar para o jantar, cochichou bem baixinho,
para não acordar o cansaço.
- Quanto maior, mais vazio e longe do
resto fico, respondeu o buraco.
- Bela audição.
- Não mude de assunto. Se quer comer
ainda hoje apresse-se em tirar a si do caminho, e não a mim.
O buraco era sua própria solução.
Era o problema e a saída. Percival seguiu o conselho. Não tinha que
fazer muita coisa, o buraco que tinha que sair dele, que desistir.
Afinal, queria mais e sabia que só precisava sentir.
Quando fora, se despediu do oráculo
e estreou novamente a liberdade. Apesar de não ser uma liberdade
total, combina melhor com Percival do que a segurança do buraco. Foi
atrás do pessoal com quem dividia a casa. Ela estava mudada, mas
estava lá, eles não. Aparentemente, o tempo correu diferente por
aqui. Será que cansaram da demora? Amaldiçoou o buraco, seus
amigos, o abandono, a culpa...
Suas maldições sempre duravam tanto
quanto seu ressentimento. Logo estava melhor do que antes. Sacou que
nunca, nem muito antes da queda, precisara destes amigos. Acrescentou
até uma alteração no próprio vocabulário, não queria mais
chamar quem dividia a casa de amigos. Parou para pensar se estava
sendo muito exigente. Continuou, podia pensar andando.
- Como vou confiar neles?
Percival não sabia como se explicar.
Sabia que eles gastam sua existência aprendendo o que é preciso
para existir, de outros que desconhecem o que fazem, ou o que estão
fazendo. Sabia que passaram tanto tempo construindo uma ideia de
conforto, de praticidade, construindo os deuses substitutos,
instrumentos para facilitar dificuldades nem tão difíceis, que se
esqueceram de como eram, se fizeram obsoletos. Sabia que os
equipamentos fazem tudo, enfim, não há mais necessidade nem de si.
Percival só conseguia conceber em deuses pré-agora e pós-depois,
daqueles que dançavam voando. Afinal, só não voa quem acredita que
gravidade é regra, ou pior, quem acredita em regra.
Ao exemplo de todo o resto, que
grande contradição. Quem ensinou isso a ele foi o buraco. Por um
salto de momento, voltar nesse assunto fez com que voltasse junto.
- Do que está falando?
- Nada que queira te contar, só
cochichei pro lado errado.
- Ok. Falta muito?
- Sei lá, tu que sabe onde é.
- Anhé!
Andavam em paralelo, de cabeça e
atenção para a calçada. Ambos não pensavam em nada, senão no
caminho que estavam fazendo, nos passos que davam e no casamento
deles com a aquarela acidental do cimento e dos azulejos. Janta se
sentia pesada. Como se quase todo seu corpo estivesse pendurado, se
via num abismo em que só uma parte sua segurava todo o resto. Se
esta falhasse, ela ia cair. A única certeza é que depois não
conseguiria se levantar, e nem vontade teria.
- Não entendo os suicidas.
- Também não.
- Temos tantas vidas... Se quiser
abandonar uma, não precisa largar todas.
- Nunca pensei por esse lado.
- Pois é. Alguns se mudam, largam
aquilo que costumamos chamar de tudo. Outros largam tudo mesmo, vão
para lugares sem regras. Lugares em que podem fazer as próprias e
chamar amigos e simpatizantes desse desmanche da gente. Posso até
imaginar que lá ninguém nos julgue por ser o que somos, disse quase
suspirando.
Percival gostou muito da ideia e
sorriu um sorriso involuntário, tão sorrido, que surpreenderia
qualquer um que se arriscasse a encarar um pouco. Queria viver desta
maneira, ou já ter vivido para contar para aqueles que acham
impossível e para quem nem considerara esta alternativa. Não sabia
nem ler e isso não o impedia da vontade de escrever um livro inteiro
sobre tudo isso. Já se imaginava correndo, errando, descobrindo o
que até agora não tinha nenhuma importância.
Faltaria poucos passos, se não fosse
a chuva. A água que vem de cima, por algum motivo, tem um jeito
estranho de limpar o que nem parecia sujo. Antes de cair, ela te dá
um toque e te conta uma outra versão da onde está pisando. Isso
dificulta as coisas para a pressa. Ninguém consegue manter o ritmo
com tanta informação caindo e formando poça.
Chegando lá, logo onde achavam que
queriam chegar, Janta cheirou seu rosto e disse, com uma voz rouca e
tímida e colorida:
- Entendi. Dividimos o que perdemos.
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