e o que vem é

pois bem, vamos falar sobre o politicamente correto, mas com preguiça: basicamente é um termo inventado por um grupo privilegiado que nunca sofreu opressão. a primeira restrição à liberdade não é tão forte, mas o corpo não está calejado - tanto que é dor doída por muito tempo

mas tem mais coisa a se discutir nessa treta toda. por exemplo, o que é ser privilegiado? o que é opressão? o que é liberdade?

privilegiado é aquele que tem fácil acesso ou que já possui o que é valorizado no seu grupo ou sociedade e o que ele valoriza por consequência

opressão é tudo que impede alguém de fazer algo que tenha vontade

liberdade é expressar a vontade. mesmo que não seja tua, que seja um vontade de outro

mas acho que o maior problema do politicamente correto é que somos narcisistas o suficiente para sempre pessoalizar a questão. quando denunciamos um abuso é no caminho de criminalizar, demonizar, patologizar a conduta e principalmente o agente. quando somos denunciados nos defendemos do jeito que podemos. a crítica nunca é bem vinda. sem o narcisismo exagerado não haveria sobreidentificações, incentivos de violência e polêmicas desnecessárias

- cara, não gostei daquilo que tu falou
- oxe... porque?
- me ofendi, já que já sofri com isso aí antes e não foi legal
- saquei. bem, não foi minha intenção ofender
- sei que não foi, só estou discutindo a piada
- pois é, também acho ela agressiva. porque será que é engraçada?
um exemplar da espécie diáloguis impossíbiliaus

o problema não é o preconceito, mas o que ele permite. é inútil combater o preconceituoso

rastro ou propaganda 2

Tirou os óculos pra ler melhor o motivador do encontro. Era sobre um evento do primeiro de maio, com músicos, palhaços, ilusionistas, essas coisas. Sem que terminasse de ler, outro rapaz cutucou seu ombro. Muito agitado, com a roupa toda suja e bagunçada. Ele que veio correndo e gesticulava com as mãos, rostos e pernas, falava tão pouco com a boca, era a imagem do movimento. Já ela, ainda pousada no quarto passo.
- … então, moça, preciso de ajuda!
- O que aconteceu?
- Ora, o moço da padaria tá passando mal, moça!

 Lembrou que estava indo até lá tomar um café. Cinco, seis, oito, nove, dez, passos bem mais rápidos desde o hiato. Padaria lhe é estranho. Sempre chamara este lugar de café: Café do Juca. Se por um excesso de extroversão conversasse com algum funcionário, talvez saberia de quem é o café, se é um café ou uma padaria e se o dono chama Juca. Desse desconforto à tentava acreditar que com o tempo conheceria alguém. De certo modo nem gostaria de conhecer e ainda receava de ter que se acostumar com outro dono.

rastro ou propaganda 1

- Um, dois, três, quatro, quatro, quatro, quatro...
Um garoto cansado demais para ser educado a impediu de continuar contando os passos ao lhe emprestar sem pedir um teco do seu tempo e movimento.
- Que é isso?
- Comemoração do dia dos trabalhadores, respondeu depois de conferir no panfleto que estava estendendo.
- Certo, obrigada. Ou seria obrigado? Perguntou baixo o suficiente para que o garoto, que já havia dado as costas, não ouvisse.

 E não ouviu, nem sumiu de vista. Sem desgrudar os pés do chão, explorando a paisagem limitada pelo eixo do próprio tronco, ela contou quantos entregou para os outros passantes, os que colocou nas maçanetas e para-brisas dos carros, nas caixas de correio das casas. Foram quatorze, fora o maço que enfiou dentro de um saco de lixo. Calculou que dava pra entregar mais por cada rua e assim, terminaria antes e evitaria o mau humor das horas trabalhadas. Se bem que a tolerância diminuiria como as horas e a rabugice seria inevitável. Apesar da hora e data, a cidade estava estranhamente vazia. Depois que o garoto sumiu, só era papel e ela e paisagem.

O que queria ter escrito

Tem tantos no mundo. Ele é obviamente grande demais, não há necessidade de ir tão longe se tem gente suficiente por aqui. Nem precisa de uma volta no bairro, ligar a TV ou o computador. Feche os olhos por alguns minutos – em pé, para que teu corpo não te permita dormir. Vai sentir uma vibração numa frequência as vezes alta, as vezes fria. São os outros, passando por você, entre o que acontece dentro de você. Dá para escolher? São tão diferentes, tem capacidades tão diferentes... Se é que é preciso escolher. Amar é ser e pedir exclusividade, e é isso o que acaba acontecendo: se deixa de amar todos os outros, os quais nunca provou do amor, para se limitar a só um. Talvez amar seja sentir a frequência.
Pensando nisso, Percival atravessa a rua. Essa rua parece menos escura do que ontem, cochicha, com medo de alguém ouvir. Já aprendeu a dizer mudo, a imaginar as palavras só para si, mas tem um prazer lúdico ao sentir o pensamento melodiado e bagunçado com os outros barulhos da cidade. Prefere esse parecer que está falando com alguém, assim de algum jeito se faz acreditar que é parte da cidade. Finge parecer menos sozinho, finge parecer mais.
E a sobra de Percival não impede seus dentes de escaparem da boca ocasionalmente. Ao contrário dele, alguns percebem e se assustam, não o bastante pro susto virar aviso. Está ocupado demais tentando cochichar no ritmo de todo o resto, sem atrapalhar, sem pedir para virar resto.
- Estou cansado de despedidas, completa Janta, sempre esquecendo que é fêmea.
- Acho que funciono ao avesso, me cansei é das conhecidas. Essa coisa de me apresentar... Como se me conhecesse!
- Mas se despedir-se de todos e não conhecer mais ninguém, vai ficar sozinho.
Percival respirou fundo. Seu nariz esquentou. Já fazia tanto que se sentia sozinho. Isso não tem a ver com a companhia, tem a ver com estar dividido: meio vazio, meio cheio de merda. Há quem se engane, mas Percival manja do feng shui desse interior. O vazio ocupa espaço, não deixa outras coisas entrarem porque curte a teimosia de ocupar. Já a merda, coitada, é ingênua o suficiente para acreditar que a culpa pelo vazio é dela. Ela pesa bastante, até porque é geralmente onde o vazio descansa os braços. Ela entra com a mesma facilidade e necessidade que sai. É impressionante, olhando de uma distância confortável, o quanto o organismo precisa de merda. Percival não se tocou que não tinha respondido.
- Tu sempre te distrai. Aliás, antes fosse só tu. Deve de ser por isso que não gosto de me despedir. Parece que ninguém escuta o que tenho para dizer, que o importante da despedida é virar as costas e sentir saudade.
Janta ainda acredita que pode ser especial na vida dos outros e das pessoas, cochicha Percival. Ela não entendeu ainda o quanto é descartável. Realmente ninguém liga.
- Cuma?
- Tá querendo dizer que não vamos mais nos ver?
- To querendo dizer que não gosto de despedir, só isso. Terminou a frase antes de terminar de jogar a orelha para trás, com um gesto que subiu da coluna e rastejou do pescoço até a cabeça.
- Então, Percival sabia que ela estava mentindo, o que quer dizer? Vai passar um tempo fora?
- Não sei ainda. Sinto como se estivesse num buraco. É fundo o suficiente para não saber o que acontece lá em cima – só vejo a luz do dia. Apesar disso estou confiante que me observam. Apesar das paredes do buraco, me sento exposta.
- Já tentou escalar, pedir ajuda...?
- Tentei voar. Quase consegui algumas vezes, mas o ar parece não querer deixar. Será que preciso de permissão de alguém?
O instante fez-se num silêncio, daqueles que não incomodam. Seria fácil chutar, pelo cessar do cochicho, que até o pensamento estava silencioso. Os dois mantinham a marcha sem qualquer dedicação, e dela nem precisavam, já que a direção estava determinada, como o trem é ao trilho, pela distância perfeita entre seus olhares. Um prazer, ou uma vontade um tanto mórbida, não se sabe ao certo, começava a querer invadir este espaço, que parecia vazio até então. Percival interrompe a interrupção ao pedir que o barulho volte a barulhar:
- Agora não vou dizer nada. Não por desatenção. Por não ter o que dizer.
Enquanto caminhavam em direção ao almoço, Percival parou de prestar atenção no cochicho, em Janta, nos outros ruídos... Lembrou do que aconteceu há uns anos atrás, quando conseguiu sair de um buraco. Não parecia tão fundo quanto este, mas não custa lembrar.
Naquela época estava ansioso de nunca sentir medo, de tanto que o protegiam. Dividia um quintal com alguns colegas um tanto carinhosos e divertidos. Até lhe serviram comida. Desconfiou quando o prenderam sozinho dentro de casa, mas logo supôs que foi um mal entendido.
Depois desse dia que começou a caminhar ignorando o caminho, prestando atenção em estar tão contrariado, tão em dívida com a própria dúvida. Tanto não via nada, que caiu antes de se tocar do buraco, só sentiu a queda quando bateu o medo. Ficou um tempo lá, curtindo. Lembrou de um programa que assistira, em que um especialista dizia que a introspecção era necessária. Tinha permissão para achar que precisava.
Depois que a excitação inicial passou, esqueceu do especialista, relacionou a queda com o todo e qualificou a própria situação como “preso num buraco”. Cochichou e tentou algumas estratégias para sair, nenhuma funcionou. Foi quando decidiu cavar. Sem instrumentos próprios, podia usar as unhas, enquanto estivessem ali. Como não cortava com frequência nenhuma, eram duras, quase como ossos expostos pela ponta dos dedos.
- Se conseguir cavar bem rápido na diagonal, consigo ainda chegar para o jantar, cochichou bem baixinho, para não acordar o cansaço.
- Quanto maior, mais vazio e longe do resto fico, respondeu o buraco.
- Bela audição.
- Não mude de assunto. Se quer comer ainda hoje apresse-se em tirar a si do caminho, e não a mim.
O buraco era sua própria solução. Era o problema e a saída. Percival seguiu o conselho. Não tinha que fazer muita coisa, o buraco que tinha que sair dele, que desistir. Afinal, queria mais e sabia que só precisava sentir.
Quando fora, se despediu do oráculo e estreou novamente a liberdade. Apesar de não ser uma liberdade total, combina melhor com Percival do que a segurança do buraco. Foi atrás do pessoal com quem dividia a casa. Ela estava mudada, mas estava lá, eles não. Aparentemente, o tempo correu diferente por aqui. Será que cansaram da demora? Amaldiçoou o buraco, seus amigos, o abandono, a culpa...
Suas maldições sempre duravam tanto quanto seu ressentimento. Logo estava melhor do que antes. Sacou que nunca, nem muito antes da queda, precisara destes amigos. Acrescentou até uma alteração no próprio vocabulário, não queria mais chamar quem dividia a casa de amigos. Parou para pensar se estava sendo muito exigente. Continuou, podia pensar andando.
- Como vou confiar neles?
Percival não sabia como se explicar. Sabia que eles gastam sua existência aprendendo o que é preciso para existir, de outros que desconhecem o que fazem, ou o que estão fazendo. Sabia que passaram tanto tempo construindo uma ideia de conforto, de praticidade, construindo os deuses substitutos, instrumentos para facilitar dificuldades nem tão difíceis, que se esqueceram de como eram, se fizeram obsoletos. Sabia que os equipamentos fazem tudo, enfim, não há mais necessidade nem de si. Percival só conseguia conceber em deuses pré-agora e pós-depois, daqueles que dançavam voando. Afinal, só não voa quem acredita que gravidade é regra, ou pior, quem acredita em regra.
Ao exemplo de todo o resto, que grande contradição. Quem ensinou isso a ele foi o buraco. Por um salto de momento, voltar nesse assunto fez com que voltasse junto.
- Do que está falando?
- Nada que queira te contar, só cochichei pro lado errado.
- Ok. Falta muito?
- Sei lá, tu que sabe onde é.
- Anhé!
Andavam em paralelo, de cabeça e atenção para a calçada. Ambos não pensavam em nada, senão no caminho que estavam fazendo, nos passos que davam e no casamento deles com a aquarela acidental do cimento e dos azulejos. Janta se sentia pesada. Como se quase todo seu corpo estivesse pendurado, se via num abismo em que só uma parte sua segurava todo o resto. Se esta falhasse, ela ia cair. A única certeza é que depois não conseguiria se levantar, e nem vontade teria.
- Não entendo os suicidas.
- Também não.
- Temos tantas vidas... Se quiser abandonar uma, não precisa largar todas.
- Nunca pensei por esse lado.
- Pois é. Alguns se mudam, largam aquilo que costumamos chamar de tudo. Outros largam tudo mesmo, vão para lugares sem regras. Lugares em que podem fazer as próprias e chamar amigos e simpatizantes desse desmanche da gente. Posso até imaginar que lá ninguém nos julgue por ser o que somos, disse quase suspirando.
Percival gostou muito da ideia e sorriu um sorriso involuntário, tão sorrido, que surpreenderia qualquer um que se arriscasse a encarar um pouco. Queria viver desta maneira, ou já ter vivido para contar para aqueles que acham impossível e para quem nem considerara esta alternativa. Não sabia nem ler e isso não o impedia da vontade de escrever um livro inteiro sobre tudo isso. Já se imaginava correndo, errando, descobrindo o que até agora não tinha nenhuma importância.
Faltaria poucos passos, se não fosse a chuva. A água que vem de cima, por algum motivo, tem um jeito estranho de limpar o que nem parecia sujo. Antes de cair, ela te dá um toque e te conta uma outra versão da onde está pisando. Isso dificulta as coisas para a pressa. Ninguém consegue manter o ritmo com tanta informação caindo e formando poça.
Chegando lá, logo onde achavam que queriam chegar, Janta cheirou seu rosto e disse, com uma voz rouca e tímida e colorida:
- Entendi. Dividimos o que perdemos.

forca é um jogo pra todas idades

toda vez que vejo notícias sobre crimes e punições, penso que a galera curte muito uma chacina, um pedófilo, um atentado. assim pelo pelo o assunto e a mobilização que essas ações geram. tem sim muita coisa errada por aí e tentar mudar todas é muito difícil, mas não tentar mudar nenhuma já é sacanagem. o que quero dizer é que quando esses crimes são repercutidos não se pensa na situação que permitiu que um ser humano, tão ser e tão humano como todos nós - não acredite naquelas baboseiras de psicopatia ou bandidagem generalizada, isso é estratégia para tentar  separar quem comete crime do resto da população, como se a partir do momento em que se investe em quebrar uma regra social, o sujeito em questão se transforma inteiro em um criminoso -, cometer o crime, o que acontece é a vontade geral da nação em expor a sua cabeça em praça pública, como nos filmes de idade média.

dito de outro modo, não importa se ele matou alguém, ou se outra pessoa pode matar outro alguém, o que importa é que este cara, que repito, era sujeito como todos nós e está agora reduzido, simplificado a um criminoso, seja punido. o que escuto nesses momentos é: "fodam-se todas as pessoas envolvidas na situação, a vítima não é a peça mais importante do tabuleiro!".

não se vê uma mobilização de capital sentimental nem financeiro em soluções para esses problemas. aliás, se um grupo ou alguém tentar agir nessas faixas de gaza, além do risco e do pouco retorno, é muito provável que a opinião pública descorde fortemente.

olha só a armadilha: imaginemos, só para uma função didática, que a sociedade seja um ente, seja um ser vivo com carne, linguagem, vontade e de certo modo imortal. ela conseguiu convencer uma galerinha que viver no seu condomínio é melhor do que viver perambulando por aí. até aí, poucos problemas, só que essa galerinha foi se reproduzindo, a população foi crescendo muito e por algum motivo que não se entende muito bem, a sociedade achou que as coisas estavam meio monótonas e resolveu que iria começar a separar essa galerinha em grupos, sendo que uns iriam ser muito mais privilegiados do que os outros - dito de outra forma, fundou o poder. isso já foi mancada da sociedade. e os problemas que eles evitavam fora do condomínio justamente por estar nele, começaram a aparecer por lá. é lógico que a sociedade desconfiou que isso poderia, de alguma forma, esvaziar o seu condomínio, sua população poderia simplesmente sair de lá e procurar outros jeitos de ser feliz. e então o que ela faz? põe a culpa na galerinha! quero dizer, não em toda a galerinha, em uma parte dela. e o mais improvável aconteceu: eles acreditaram! a sociedade foi ao delírio, não se continha de tanto gozo. nada tinha dado um prazer sádico tão agudo pra ela antes e por isso resolveu que colocar essa galerinha contra si o tempo todo, em diversos níveis e intensidades, seria seu objetivo. inclusive, ela ajudou a criar uma cultura de violência e crime, em que transgredir de modo a violentar é uma nova alegria e regra para a galerinha - e assim não faltará auto-destruição para eles, nem deleite para ela.

como a galerinha tava aumentando o espaço do condomínio e com isso dando mais diversão e renda para a sociedade, sem nenhum benefício, pelo contrário, com muito mais danos, é lógico que ela tomou muitas outras medidas além da que citei ali em cima, como por exemplo, dar um jeito de amedrontar tanto essa galerinha e depois fazê-los pensar que precisam dela para sobreviver.

também não acredito muito na potência de realidade dessa parábola, até porque a sociedade não é um ser, e nós não precisamos centralizar um inimigo para agir, para nos movimentarmos em direção à mudança. nós somos o problema e nós somos a solução.

enfim, acho de já mudei de assunto umas três vezes durante o texto. a pergunta que norteia a porra toda é:

o que é mais importante: destruir os errantes ou cortar a alimentação dos erros?